História da Geografia
A Expansão colonial e pensamento geográfico
A expansão colonial e a afirmação nacional na Europa do final do século XIX constituem duas faces de uma mesma moeda e confundem-se com a legitimação do antigo saber geográfico enquanto disciplina acadêmica de grande prestígio oficial. Nesse período, a expansão do imperialismo, no plano da política internacional, ocorreu em meio a intensa luta entre as potências pela divisão dos continentes em “zonas de influência”, tal que a afirmação mesma do sistema capitalista, em nova fase imperial, trará profunda repercussão na realidade concreta e, portanto, na divisão política do mundo. A consequência será aceitação da geografia enquanto conhecimento escolar e universitário estratégico.
A geografia existe desde que existem aparelhos de Estado. O exemplo do mundo ocidental seria Heródoto e Estrabão que, já antes da era cristã, não contam apenas uma história, mas procedem a um verdadeiro “inquérito” da função dos objetivos do “imperialismo” comercial ateniense. Segundo Moreira (1985), a geografia nasceu entre os gregos, apoiando a expansão comercial na forma de relatos de povos, terras e mapas.
Aproximando-se mais do pensamento filosófico que antecedeu e inspirou diretamente o aparecimento da geografia, enquanto pensamento indutor da expansão colonial do século XIX, não se pode deixar de mencionar a obra de Immanuel Kant, o que mais tarde seria denominado “geografia física”. Segundo Moreira, para Kant o conhecimento é dado pelos sentidos, sendo, portanto, um conhecimento empírico que advém da percepção de um “sentido interno” que revela o homem (antropologia pragmática) e um “sentido externo” que revela a natureza (geografia física). A percepção orienta a experiência que para isso precisa ser sistematizada, cabendo à geografia realiza-la, enquanto a história a fará no plano do tempo. Assim, a sistematização passa por dois processos associados à narrativa (história) e à descrição (geografia).
Juntas, abarcariam o conjunto das nossas percepções fundamentando o conhecimento empírico necessário ao desbravamento dos povos e das terras ainda desconhecidas ao europeu ocidental ou, ao menos, à elite política que aí se consolidava na forma de Estados-nação com pretensão de empreender uma nova expansão colonial. Para Moraes (2005), a relação entre geografia e o colonialismo do século XIX é siamesa, pois promovia o levantamento sistemático do mundo extra-europeus, suas riquezas potenciais necessárias à evolução do capitalismo que se afirmava através da expansão industrial (matérias-primas e novos mercados).
A Conferência Internacional de Geografia (1876) convocada pelo rei Leopoldo II da Bélgica tinha por objetivo, segundo discurso do próprio monarca,
“a tarefa de debruçar-se sobre o continente africano com o intuito de abrir à civilização a única parte do nosso globo em que ela não havia ainda penetrado…”
A síntese geográfica associada ao projeto de observação sistemática da Terra, tinha diversos pontos de vista, como o determinismo natural, o possibilismo (adaptativo da geografia humana) ou a geopolítica.
O propjeto científico que conduziu Humboldt à América espanhola foi por ele definido como uma “empresa idealizada com o objetivo de contribuir para o progresso das ciências físicas” ao mesmo tempo que considerava a publicação de seu trabalho podia oferecer interesse “para a história dos povos e o conhecimento da Natureza”. Entretanto a isenção do projeto do conhecimento ampliado e aprofundado da Terra foi posta em xeque quando esse autor denunciou o sofrimento humano causado pela escravidão ali. Tal fato não só impediu a realização de expedições que Humboldt pretendia fazer posteriormente às possessões inglesas na Ásia, como, também, devido à pressão direta da burocracia prussiana, foi impedido de abordar questões humanas que considerava relevantes em sua viagem à Rússia.
Só na segunda metade do século XIX que se intensificam as grandes expedições e a exploração científica do interior dos continentes de que Humboldt foi pioneiro. Floresce a era das sociedades de geografia, de grande prestígio durante um largo tempo. No período, grandes progressos na cartografia, topografia, geologia, metereologia, oceanografia e estatística.
Segundo Moraes (2005), tratava-se, assim, na ótica do colonizador europeu, da construção de um espaço e de uma sociedade que tinha na ocupação do solo e na expansão territorial a base de poder. Nas Américas, por exemplo, a expansão territorial estava intrinsecamente assentada na disponibilidade de terras, possibilidade de avanço da fronteira econômica e demográfica, facilitada pelos caminhos naturais existentes. Permitia que, com enorme velocidade, se penetrasse nas remotas extensões do continente, traçando as linhas gerais da definição dos territórios nacionais, através da origem de novas vilas e fronteiras político-administrativas então criadas.
A Geografia Moderna e a Questão Nacional na Europa
Na Europa, a plena superaçnao da fragmentação feudal e da legitimidade dinástica implicava a construção simbólica de novos laços de coesão social legitimadores da forma estatal de dominação política. O discurso geográfico moderno foi gerado naqueles países, como é o caso da Alemanha, onde esse processo necessitou de uma forte dose de indução, caminhando junto com a própria consolidação do Estado nacional. Ali, as representações espaciais forneceram um elemento de referência negado pela história, colocando a discussão geográfica no centro do debate ideológico. Isto no berço, pois a partir daí as teorias e conceitos da geografia se difundem – o que em si mesmo é um elemento revelador de sua eficácia ideológica.
Por outro lado, os grandes confrontos territoriais a que se assiste na época giram principalmente em torno dos nacionalismos, convertendo as questões territoriais em temas relevantes, quer no que se refere às novas nações, à rivalidade entre as grandes potências de então – Inglaterra, França, Alemanha e Rússia – quer no que diz respeito à formação e consolidação dos impérios coloniais. A essa conjuntura sociopolítica juntava-se um contexto de afirmação dos estudos geográficos que se definiam em torno das relações entre os homens e o ambiente em que viviam. Essa orientação geral da geografia aparecia, contudo, marcada por diversos matizes, uma vez que o movimento de constituição do pensamento geográfico moderno conheceu conjunturas e contextos de formulação díspares, o que alimentou diferenciações internas e polêmicas, até porque essa geografia se institucionalizou em “escolas nacionais”.
Nesse contexto, os antagonismos de interpretação da geografia moderna iam desde a herança de Karl Ritter (1779-1859), que se fundava na compreensão das relações entre o destino dos povos e o seu ambiente, à orientação de Friedrich Ratzel (1844-1904), que indagava acerca da originalidade dos povos nos diferentes meios de desenvolvimento e nos diferentes meios naturais, ou à orientação francesa, sob a influência de Vidal de la Blache (1845-1918), que sublinhava a importância das civilizações e na ação do homem na modelagem das regiões geográficas.
No período que vai do último quartel do século XIX e o primeiro do século XX, os grandes temas da geografia humana e da geografia política, em particular, centram-se em torno do Estado, do povo e do território. Os corpos territoriais do Estado, o território, as fronteiras, as capitais, afirmam-se como objetos de estudo da geografia política, oferecendo um vasto campo de estudo inaugurado pela obra de Ratzel.
Nesse processo, o nacional, através do discurso geográfico, torna-se natural. Assim, entre os acidentes geográficos da superfície da Terra, destacam-se as fronteiras, e estas qualificam povos, cujo caráter vai sendo moldado num ininterrupto intercâmbio com suas regiões de origem. O nacionalismo, como ideologia identitária, constituiu o fundamento do Estado-nação, que progressivamente se superpôs ao Estado moderno. Esta ideologia, elaborada com o auxílio do ensino da história e da geografia, tornou-se então um recurso simbólico necessário à consolidação do Estado como instituição política territorializada e legitimada pela sociedade.
A busca de um tratamento integrado de fenômenos naturais e sociais está na base das indefinições e ambiguidades que caracterizam ainda hoje algumas das categorias centrais da geografia moderna como os conceitos de meio, paisagem, ambiente, território, região que, tomados a outras áreas do conhecimento e recontextualizados no discurso geográfico, emprestaram uma concretude, isto é, uma “naturalização” aos processos sociais. (…) Nesse processo histórico, a consolidação do Estado-nação, como instituição inovadora, como uma forma de poder político territorialmente centralizado, só foi possível pela submissão e pelo controle do território. Este controle se fez pela imposição da lei, pelo comando centralizado da burocracia da administração pública e pela uniformização das instituições sociais: língua, moeda, pesos e medidas, etc.
Deve ser observado que a substância da nação, no sentido de comunidade de destino, resultou da estratégia política de apropriar-se do sentido identitário contido na ideia de povo e colá-lo à organização política comandada pelo Estado. O povo passou a ser o corpo da nação, e, portanto, confundido com ela e submetido à centralidade territorial do poder político. Além do povo, era necessário, também, possuir um território e uma lei para se constituir um Estado-nação. Sendo o Estado uma construção política e ideológica que se fez no tempo e no espaço, a centralidade territorial do seu poder decisório foi fundamental para a tarefa de tomar a si a obrigatoriedade de fornecer educação para todos, utilizando o aparato institucional a sua disposição para as exaltações simbólicas do nacionalismo. Disciplinas como a História e a Geografia foram estratégicas nesta tarefa.
Na atualidade, do ponto de vista da geopolítica, pode-se afirmar que à geografia dos oficiais que decidem com base nos mapas as táticas e estratégias, à geografia dos dirigentes do aparelho de Estado, que estruturam o seu espaço em províncias, circunscrições, distritos e à geografia dos exploradores (muitas vezes oficiais) que preparam a conquista colonial e a exploração, conforme descrita por Lacoste (1981), juntou-se a geografia das grandes corporações e dos grandes bancos que decidem sobre a localização dos seus investimentos em nível regional, nacional e internacional, fazendo do sistema logístico, o vetor espacial mais importante no qual se trava a guerra pela competitividade econômica na contemporaneidade.
As Principais Correntes Metodológicas da Geografia
A questão metodológica tem que ser vista no bojo da problemática teórico-conceitual da geografia como um todo e, portanto, tendo como balizamento os anseios e indagações que instigam o pensamento geográfico no curso da história. Cabe destacar, como acontecimento fundamental, o estabelecimento de cátedras de geografia em várias universidades na Europa, onde, de acordo com Bernardes (1982), o governo da Prússia foi pioneiro, a partir de 1874, e logo em seguida, toda a Alemanha, recentemente unificada.
Da influência e do confronto com as ciências naturais e sociais daquele período, sobretudo devido ao darwinismo, reforçou-se o caráter ambientalista da geografia através do estudo das relações entre o homem e o meio, a partir do qual eclodiu o confronto doutrinário “determinismo versus possibilismo”que irá marcar grande parte das escolhas metodológicas que se fará na geografia desde então.
O Determinismo postula que “o homem é um produto da superfície terrestre”. Já no Possibilismo, os elementos do meio natural não“produzem” resultados, independentes do momento histórico. Isto é, eles constituem “condições” (e não “fatores”) que pesam ora mais ora menos poderosamente, pautando os resultados de outras forças originárias de ação humana.
Os possibilistas foram buscar inspiração principalmente na interpretação das sociedades primitivas e tradicionais a partir das quais foi produzida por Vidal de la Blache e seus discípulos imediatos uma noção fundamental para o novo método geográfico: a noção de gênero de vida. Nesse sentido, nas relações entre o homem e o meio, o homem não é um mero elemento passivo; ele é sobretudo um agente e sua ação é tanto mais antiga quando mais avançado seu grau de cultura e mais desenvolvida a técnica de que é portador. Desse modo, dentre as condições oferecidas pelo meio, o homem escolhe as de maiores possibilidades para a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento cultural.
Nesse contexto, La Blache edificou seu método geográfico em torno de dois pontos principais:
- Adotando uma base filosófica de interpretação dos fatos constituída pela doutrina do possibilismo, a qual se tornou a refutação final ao determinismo geográfico
- Adotando o estudo das regiões como o meio mais adequado ao conhecimento das relações homem-meio, centro da controvérsia filosófica, que seria apenas superada no período entre as duas guerras mundiais
Desse modo, o estudo da região, ao privilegiar a intuição, a observação e a descrição da paisagem como o método analítico por excelência, a geografia tradicional terá no empiricismo sua base de sustentação.
No período entre guerras, a trajetória metodológica da geografia será marcada por uma tensão entre a força da tradição empiricista clássica e a necessidade de sua superação através da adoção de um campo teórico- metodológico lastreado no pensamento científico. Pode-se afirmar que a geografia tradicional em questão de método pouco se afastou da recomendação de Ritter (1779-1859) no sentido de que ela deveria ser empírica e de que o observador deveria progredir de observação para observação na busca de leis gerais e não partir de opiniões preconcebidas para hipótese e para observação. Vidal de la Blache não se afastou desse espírito, uma vez que a tradição vidaliana foi fiel ao método intuitivo.
Abalada pelo aprofundamento das relações da geografia com as ciências sociais e a economia e pela ênfase dada à abordagem sistêmica e à assimilação do método científico através da busca de leis gerais e do desenvolvimento da teoria, ocorre a ruptura no paradigma da geografia tradicional pela Nova Geografia (New Geography) privilegiadora de métodos quantitativos. Com efeito, de acordo com Faissol (1978) o novo paradigma da geografia é sistêmico, isto é, usa a matemática e a estatística, por concepção ao mesmo tempo que por necessidade, mas continua essencialmente geográfico porque sua principal área e objetivo é a análise espacial.
Com efeito, a “revolução” teórico-quantitativa que balizou grande parte da produção da geografia brasileira nos anos 70, na busca de embasamentos teóricos e operacionais sólidos e de uma linguagem universal de comunicação e entendimento com outros campos do saber pode ser caracterizada pela adoção de técnicas quantitativas e modelos conceituais matemáticos-estatísticos. O momento histórico em que surgiu esse paradigma foi caracterizado pela intensa urbanização, industrialização e expansão de capital, gerando modificações profundas na organização espacial e em seu entendimento que acabaram por abalar profundamente os conceitos e métodos que pautavam a Geografia até aquele momento.
A análise tradicional privilegiava uma ótica retrospectiva, estando, assim, pouco habilitada a projetar o futuro e, portanto, inoperante como instrumento de intervenção na realidade. Os autores da Nova Geografia vão propor, assim, uma ótica prospectiva, um conhecimento voltado para o futuro, que instrumentalize uma Geografia aplicada. Daí sua denominação de Geografia Pragmática.
Para Moraes (1981), a New Geography promoveu uma renovação conservadora da Geografia,
“onde ocorre a passagem, ao nível dessa disciplina, do positivismo para o neopositivismo. Troca-se o empirismo da observação direta (do ‘ater-se aos fatos’ ou dos ‘levantamentos dos aspectos visíveis’) por um empirismo mais abstrato, dos dados filtrados pela estatística (das ‘médias, variâncias e tendências’). Do contato direto com o trabalho de campo, ao estudo filtrado pela parafernália da cibernética. Nesse processo, sofistica-se o discurso geográfico, tornam- se mais complexas a linguagem e as técnicas empregadas”
Nesse contexto, o objeto de estudo da Geografia – o espaço geográfico – será estudado de forma abstrata, sendo concebido como uma expressão topológica, decorrendo daí a importância dos modelos e fórmulas lógicas para sua interpretação, nos quais o homem aparece como mais uma variável a ser levada em conta, ou seja, destituído de qualquer expressão social ou histórica, sendo encarado como um elemento genérico dentro de um vasto universo de variáveis espaciais. Assim, o espaço não é concebido como algo produzido historicamente pela sociedade.
O saldo da Geografia Pragmática foi ao lado de um real crescimento técnico-operacional alcançado, um empobrecimento na sua capacidade analítica. Nesse sentido acusada por muitos geógrafos de fornecer uma visão excessivamente neutra de um espaço geográfico marcado por um momento histórico de inúmeros conflitos e rupturas na sociedade, a New Geography tem seus fundamentos metodológicos cada vez mais contestados pela Geografia Crítica. Será a leitura qualitativa da realidade concreta revelada pelo espaço geográfico com suas tensões e contradições derivadas das relações sociais, econômicas e políticas que irá marcar a geografia crítica e os novos horizontes conceituais e metodológicos a ela associada. Essa corrente defendia, sobretudo, uma geografia menos “neutra” e, portanto, mais engajada com os princípios da justiça social, diminuição das desigualdades sociais e regionais.
Ela se consolidou num contexto de forte revisão de ideias e valores, como foi o das décadas de setenta e oitenta do século XX influenciadas pelos movimentos de maio de 1968, na França, das lutas civis e do fim da guerra do Vietnã, nos Estados Unidos, dos movimentos feministas nos Estados Unidos e na Europa e do acesso à terra na América Latina e do ecologismo a partir da Europa e dos Estados Unidos. Em termos ideológicos, o diálogo com o pensamento de esquerda foi uma constante nesse período, aí se destacando aquele estabelecido com os pensadores da Escola de Frankfurt, com o anarquismo (Réclus, Kropotkin), com Michel Foucault e com o marxismo e os marxistas, em particular os não dogmáticos.
A geografia passa a dialogar na atualidade com teorias, conceitos e métodos que procuram abandonar referências clássicas da modernidade aonde se incluem a concepção marxista da ciência, para caminhar em direção as novas fronteiras do conhecimento.
Segundo Andrade (1995), não é fácil elaborar um esquema de teorização e de metodologia únicos para a Geografia ou para qualquer outra disciplina no momento de grandes indefinições e transformações em que se vive na contemporaneidade. Já Megale (1976), afirma que não existe na atualidade um padrão metodológico para o pesquisador; este deve possuir uma versatilidade, uma habilidade quanto ao problema pesquisado e os meios de se chegar a ele.
A revalorização da geografia e de seus métodos de pesquisa se evidenciam emummomentohistóricocomooatualnoqualouso“sustentável”do território está na raiz de grande parte dos problemas e das soluções que gravitam em torno dos grandes dilemas do século XXI, tais como o da questão ambiental e da permanência e renovação das desigualdades e dos conflitos socio-espaciais.
Referência:
https://fichasmarra.wordpress.com/2010/11/14/a-historia-da-geografia